A ida à La Paz
Na fila para a sala de embarque, no Aeroporto de Guarulhos, em Sampa, o coração começando a palpitar, um ligeiro frio na barriga e a cabeça já na Bolívia, acontece uma pequena situação de stress. Ao passar na porta de detector de metais, a máquina resolve apitar para mim. Eram as pecinhas de metal do meu coturno de novo...no aeroporto de Brasília, o sensor já havia acusado sua presença. Uma das funcionárias passou o detector em torno de meu corpo, inclusive os pés, e me liberou. Em Guarulhos, para minha surpresa, a funcionária, sem um pingo de sensibilidade, me manda tirar os coturnos para serem passados na máquina de Raio-X na frente de todo mundo na fila (e olha que as filas estavam enooormes!). Detalhe: desamarrar os coturnos não é uma tarefa muito simples, ainda mais rapidamente e na frente de todos.... Eu já toda tensa por causa da viagem e ainda tendo que passar por um constrangimento desses...não me nego a tirar os sapatos, reclamo é da falta de um lugar apropriado para fazer isto. Poderia haver uma salinha a parte ou, então, que nos avisassem para não viajar com determinados tipos de roupas ou calçados que possam nos causar transtornos nesse setor dos aeroportos, não é mesmo? Em agosto, depois de voltar ao Brasil, encaminhei uma reclamação a Infraero em relação ao que ocorreu. Atualmente, por via das dúvidas, viajo geralmente de tênis e pronto. É o jeito...ocupam um baita espaço no mochilão, mas fazer o quê...
Esfriando a cabeça, lá estávamos nós prestes a iniciar o vôo São Paulo – Santa Cruz de la Sierra (Bolívia). Em Santa Cruz, faríamos conexão para La Paz. O vôo foi tranquilo, graças a Deus. Até consegui tirar vários cochilos, nada mal para quem, normalmente, não consegue relaxar lá em cima. Chegando no aeroporto de Santa Cruz, nós nos sentimos meio perdidos. Entramos na fila para carimbar os passaportes, alguns companheiros de viagem estavam mais à frente, outros mais atrás. Em seguida, alguém nos orientou que seria necessário entrar no saguão geral do aeroporto, para entrar novamente na área de embarque por outra porta (???!!!). Bem...achamos isso meio sem lógica mas, lá fomos nós e, numa pressa danada, pois como o vôo saiu atrasado de São Paulo, o para La Paz já estava prestes a decolar. Lá estávamos nós, correndo, perdidos, olhando para todos os lados em busca da tal outra porta da área de embarque...que ficava justamente do outro lado do aeroporto!!! Chegando nesse outro lado, tivemos que subir (correndo, para variar) uma escadaria, enquanto numa outra escadaria ao lado desciam alguns dos padres ortodoxos que estavam no mesmo vôo anterior que nós, e também alguns violeiros. Ao pé da escada, vários repórteres e cinegrafistas registrando o evento. Como tínhamos que correr muito pra não perder a conexão, não havia tempo hábil para parar e perguntar a um deles o que se passava. Ficamos sem saber se eles estavam filmando os padres e os violeiros surgiram por acaso, se estavam filmando os violeiros e os padres apareceram por acaso, se os violeiros estavam homenageando os padres, ou nenhuma das alternativas anteriores...Aquelas pareciam cenas de um filme surrealista ou coisa parecida.
Quando finalmente alcançamos o portão de embarque, avistei aquela máquina de novo...O tão temido Raio X!!! Pensei: “Lá vou eu de novo socializar meu chulé...Essa não!!!” . Lá fui eu, com ar meio resignado, meio entediado, passar pela porta detectora de metais de novo. Como era de se esperar, ela apitou. Mas, por sorte a minha, a funcionária me indicou uma cabine onde pude me sentar e, rapidamente, mas confortavelmente e longe dos olhares curiosos, tirar meus coturnos. Assim que fiz isso, a moça correu com eles para a máquina de Raio-X e, em segundos, me devolveu. Confesso que apenas calcei as botas, não deu tempo de amarrá-las novamente, dei apenas uma leve “disfarçada” nos cadarços e lá fui eu, me sentindo a atleta dos aeroportos, correndo com os coturnos desamarrados para a pista, em direção à escada do avião que nos levaria a La Paz. Ainda bem que não tropecei nos cadarços ou coisa parecida, imaginem a “pagação de mico”...
Botellas de Oxígeno??!!! Nooooooo....
O bom da correria é que não deu tempo de ter preocupação nem frio na barriga com o próximo vôo. Mas, assim que acabei de subir a escada do avião, notei em seu interior um compartimento escrito: “Botellas de oxígeno”. Ao ler isso, confesso que fiquei com a pulga atrás da orelha...pensava: “Nossa, será que a coisa é tão feia assim? Será que eles vão fornecer um reforço de oxigênio pra gente ainda dentro do avião? Será que vou passar mal já no aeroporto de La Paz?” Uma coleção de “serás” começaram a povoar minha fértil imaginação. Humberto me disse que acha que todo avião tem essas botellas. Bom, mesmo se toda aeronave tiver isso, justamente essa foi a primeira vez que notei... e pô, tinha que ser justo nessa vez, voando pra La Paz, cidade na qual o aeroporto fica a 4.000 metros de altitude?
Meio cansada de tanto correr no aeroporto de Santa Cruz de La Sierra, e acumulando com as correrias matutinas de São Paulo, sentei em minha poltrona, estiquei as pernas, tratei de esquecer o impacto psicológico das “botellas de oxígeno” e me concentrei na expectativa e na delícia de estar, dali a apenas uma hora, mais ou menos, na cidade que leva o singelo, lindo e imponente nome de La Paz. Quando o avião decolou (era a terceira decolagem do dia!), parece que meu coração começou a disparar...desta vez, não de medo, mas de emoção. Ele já estava batendo no ritmo do andino bombo leguero. A mente trazia os sons das flautas e zampoñas. e charangos. Várias músicas tocadas pelo Raíces de América e Tarancón aqui no Brasil passavam misteriosamente por meus ouvidos sem eu precisar de um Walkman para escutá-las. Eram muitos recuerdos pairando em minha cabeça ao mesmo tempo, como um grande caleidoscópio sensorial e afetivo: lembrei-me da sugestão que o Jara Arrais, do Raíces, me passou de conhecer as músicas de Los Kjarkas. Lembrei-me de algumas músicas bolivianas que conheci por meio de um site indicado pelo Jorge do Tarancón. Lembrei-me da vontade do Humberto de comprar um cajón peruano. Lembrei-me da vontade imensa que tive, há oito anos atrás, de conhecer La Paz quando estive em Santa Cruz de La Sierra para um evento. Porém, meu tempo e grana não eram suficientes para tal empreitada. Lembrei-me de fotos da cidade que já havia visto com o nevado Willimani ao fundo.
O vôo foi até mais tranqüilo que o de Sampa a Santa Cruz. E o curioso: notamos que o avião não voou “reto” em momento algum... ele foi subindo, subindo, subindo, subindo para, em um dado momento, começar a descer, descer, descer, descer...tivemos a impressão que essa rota era só uma subida e uma descida extensas. Já era noite e dava para enxergar pouca coisa da janelinha da aeronave. Porém, já relativamente perto de La Paz, comecei a ver umas “coisas brancas” em meio a escuridão da noite....acho que eram os picos nevados das montanhas andinas!!!! Nesse momento, se a gente pudesse abrir a janela do avião, com certeza eu estaria com minha cabeça do lado de fora, tal e qual uma criança desobediente e ansiosa por estar perto de algo que acha muito bonito...Quando o piloto anunciou o pouso em La Paz, gritei internamente: “Iuruuuuuuuuuu!!!!”. Dentro de minutos, pouso perfeito e macio.
Saímos todos do vôo felizes, ansiosos pelas aventuras que nos aguardavam. Ao esperar nossas bagagens, senti uma leve tonteira, nada de anormal (pelo menos por enquanto). Depois de todos nós pegarmos nossos respectivos mochilões, nosso grupo foi acolhido por Jenny, nossa guia paceña. Nós nos dividimos em vários táxis, para nos alojarmos em nosso hotel, que fica no centro da cidade. Nosso táxi saiu do aeroporto, em El Alto, cidade da periferia de La Paz, tomando primeiro umas ruas maiores, depois menores que serpenteavam entre as casas montanha abaixo como atalhos para o centro.
O percurso até o centro já era uma aula de Bolívia. A maioria das casas muito pobres, geralmente da cor da montanha, construídas com tijolo aparente, contrastam com a roupa colorida e vistosa das cholas e cholitas. Hoje me pergunto se elas vestem roupas com muitas cores para compensar a tonalidade praticamente padrão de suas moradias. Há, inclusive, várias lojas especializadas em vender suas saias e xales típicos. Outra coisa que nos chamou a atenção foi a grande quantidade de cachorros grandes e peludos passeando pelas ruas da cidade. Com o passar dos dias, fomos descobrindo que não só os cachorros ali na região são peludos, mas também burros, cavalos, bois e até mesmo os porcos (imaginem o trabalhão pra fazer torresmo, hein)!!!
Ao chegarmos ao hotel, todos nós nos instalamos, guardamos a bagagem. Alguns ficaram descansando e outros saíram a passear, em companhia da Jenny. Era a véspera do aniversário de La Paz, e o centro da cidade estava em festa. Nós começamos nossa caminhada pelo Paseo de la República: havia muita gente para todos os lados, as comidas feitas na rua impregnavam o ambiente de fumaça e cheiro bom. Vários camelôs vendiam bandeirinhas, bandeironas, cachecóis e outros artigos com as cores de La Paz. Rui, um de nossos companheiros de viagem, compra um cachecol e uma bandeirinha. Começamos a subir a ladeira para a Praça Principal da cidade. Dali a pouco, empolgado com sua “mais recente nacionalidade” e as festas locais, ele resolve caminhar agitando a bandeirinha e exclamando: “Viva La Paz! Viva La Paz!”. Em certo momento, um senhor na rua olha para ele e grita, em tom de brincadeira: “Callate, cochabambino!!!”. Caímos na gargalhada. Jenny, nossa guia, explica que ele tem a aparência física de um boliviano da cidade de Cochabamba. Daí, o motivo da brincadeira daquele senhor.